O senhor do tempo

Há mais de 60 anos, o sírio Naser Sailoun deixou seu país para viver no Brasil. Acabou por abrir uma oficina de relógios que funciona há 58 anos no Centro de SP

Num canto escondido na rua do Comércio, número 18, todos os dias, pouco antes das 8h da manhã, aparece um senhor de cabelos brancos, roupas sociais e um suéter com padrões árabes. No rosto, carrega um sorriso largo, com o qual começa a trabalhar num dos mais antigos comércios do Centro de São Paulo. Aos 79 anos, Naser Ahmad Sailoun é o dono da São Bento Comércio, loja de conserto de relógios, chaves, pilhas, baterias e outros badulaques. O negócio está ali há 58 anos e tem nos frequentadores e moradores do Triângulo Histórico – área do Centro em que ficam importantes prédios históricos da cidade, entre eles o Largo São Bento e o Pateo do Collegio – clientela fiel.

Nascido na cidade de Tartus, na Síria, Naser é muçulmano e cresceu numa aldeia, levando uma vida que ele chama de “simples”. “Era uma vida livre, de criança, no meio das plantações das famílias do povoado”, disse, com sotaque árabe ainda marcante. O menino cresceu entre campos cobertos de azeitona, batata, figo, trigo. Desde pequeno, sempre foi curioso e habilidoso com as mãos. Divertia-se consertando coisas dentro de casa. Até que um dia, quando tinha 10 anos, o despertador do seu pai quebrou. “Desmontei o relógio todo e consegui achar o defeito. O problema é que, depois, eu não sabia montar de novo. Levei umas palmadas do meu pai”. A surra jamais foi esquecida. Mas o episódio serviu para que o menino decidisse o que gostaria de fazer da vida: seria relojoeiro.

Quando estava com 17 anos, prestes a cumprir a obrigatoriedade de se alistar no serviço militar do seu país, resolveu que daria outros rumos à sua vida. Sabendo que vários jovens sírios haviam se mudado para o Brasil e estavam levando uma vida digna, decidiu fazer o mesmo. Sentia-se feliz em sua aldeia, perto da família e dos amigos de infância. Mas queria algo mais. Entrou num navio em Beirute, no Líbano, e embarcou para o Rio de Janeiro. A viagem duraria 30 dias, durante os quais o garoto sentiria uma tristeza que jamais experimentara. No trajeto, passou por lugares belíssimos, como Espanha, Grécia e Itália. Nenhuma paisagem ou cidade, no entanto, era linda o suficiente para impedir as lágrimas de lavar-lhe o rosto. Chorava de saudade dos pais, de medo do desconhecido, de receio de sua experiência no Brasil ser frustrante. Mas era tarde para voltar atrás. Só restava-lhe dobrar os joelhos e pedir para Alá abençoar seus passos. “Graças a Deus, acabou dando tudo certo para mim no Brasil”, afirmou.

E não demorou. Quatro anos após sua chegada, já estava morando em São Paulo e casado com uma jovem de família libanesa. No dia em que ele e Safira Ahmad trocaram alianças, em 1965, Naser tinha 21 anos e a noiva, 16. Estão juntos até hoje. “Formamos uma família linda, com dois filhos, quatro netos e uma bisneta” disse, orgulhoso. Já casado, abriu sua primeira loja em 1966, aos 22 anos, também no Centro. “No início, eu fazia de tudo. Só depois comecei a trabalhar apenas com relógios e nunca mais parei”. A antiga loja ficava na rua São Bento, número 514, perto da entrada do metrô e do histórico Café Girondino. “Era outra época. Eu deixava a loja aberta até às 20h. Tinha muito movimento, mesmo à noite”. Há 10 anos, Naser encontrou um lugar mais espaçoso e mudou sua loja de endereço, indo para a rua do Comércio.

Fé, honestidade e humildade – Segundo ele, o segredo de ter um estabelecimento comercial funcionando há tanto tempo – e lá se vão quase seis décadas – é uma receita que inclui muita fé em Deus, honestidade e humildade. “Eu faço o serviço para o cliente como se eu estivesse fazendo para mim mesmo. Nunca fiquei correndo atrás de riqueza”. No dia a dia do comerciante, ele se esforça para que o freguês nunca reclame de nada. Busca atender sempre com alegria e fazer o trabalho com excelência. Se o cliente reclama, ele devolve o dinheiro. Para todos os que chegam, Naser atende sorridente, puxa conversa, pergunta da vida, da família.

Sobre a possibilidade de ampliar os negócios, ter redes sociais da loja ou qualquer coisa do tipo, o comerciante sírio é contra. “Perfume bom é aquele de vidro pequeno”, disse. Para ele, é melhor ter um lugar menor, mas arrumado, bonito, limpo e com bom atendimento, do que aumentar o negócio e perder o controle de tudo. A vontade de atender ao cliente com cortesia é tamanha, que ele chega a fazer alguns serviços menores de graça. Prefere conquistar a simpatia do freguês a colocar uns trocados a mais no caixa da loja. “Nem tudo é dinheiro nessa vida. Além disso, o cliente feliz me traz mais clientes”.

Herdeiro improvável – Apesar de ter filhos e netos, Naser nunca conseguiu passar aos seus descendentes o interesse pelo negócio do qual sempre tirou o sustento da família. Segundo ele, dá para contar nos dedos das mãos a quantidade de vezes que os filhos foram visitá-lo na loja. Seja como for, diz que quer trabalhar até o fim da vida e que será muito feliz se morrer no próprio estabelecimento. E já escolheu a pessoa a quem passará o comando da relojoaria. “Se esse menino continuar trabalhando comigo, com a dedicação que ele sempre demonstrou, vou deixar a loja para ele”, disse Naser. O “menino” a quem ele se refere é seu ajudante, Roberto de Amaral, 25, que trabalha há 8 anos no local.

É de Roberto a missão de ajudar o patrão a atender os clientes. O turno mais corrido é no horário do almoço, quando chega a formar fila de sete ou oito pessoas à espera de atendimento. Nesses momentos, Naser mantém a simpatia e o humor, mas conversa pouco com os clientes. “Não dá tempo de bater papo”. Pela manhã e no final da tarde, a coisa é diferente. Ele gosta de bater papo com os fregueses, conta histórias, faz piadas. E fala sobre a vida, o passado e o futuro com seu ajudante, que o ajuda a fechar a loja, pontualmente às 17h30. E sempre se mostra feliz com os rumos que sua vida tomou, desde que saiu da Síria para morar no Brasil. “Fui muito corajoso quando deixei meu país. Aprendi que um menino de 17 anos é capaz de tudo. Enfrentei a vida sem pensar no que poderia acontecer”, disse. Hoje, prestes a completar 80 anos e em plena atividade profissional, Naser sente que sua trajetória assemelha-se às engrenagens de um relógio que funciona com perfeição.

Crédito texto e imagens: Victor Marques

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