O rosto por trás da centenária Casa Godinho

Dono do estabelecimento fundado em 1888, Miguel Romano administra o local mantendo as tradições e cuidando de tudo pessoalmente

Primeiro estabelecimento comercial da cidade a receber o título de Patrimônio Imaterial de São Paulo, a Casa Godinho é famosa por seu bacalhau e suas empadas. Este ano, essa charmosa mercearia completa um século de funcionamento no mesmo local: o também centenário edifício Sampaio Moreira, o primeiro arranha-céu de São Paulo, com 13 andares e 54 metros de altura, no Centro. Sua origem, no entanto, é ainda mais antiga. Foi fundada em 1888, pelo imigrante português José Maria Godinho, numa casa na Praça da Sé, quando o Brasil ainda era uma Monarquia. Hoje, 136 anos depois, é administrada pelo paulistano Miguel Romano, que conhece como poucos o Centro da cidade e a própria Casa Godinho. “Meu avô e meu pai eram clientes da mercearia. Quase sempre, eu ia com eles. Eu adorava os biscoitos de chocolate”, disse.

Com a relação afetiva produzida pelas lembranças de garoto, Romano sentiu-se feliz e orgulhoso quando, em 1995, foi convidado a ser um dos sócios do estabelecimento. Aceitou de imediato. “Senti-me lisonjeado. A Casa Godinho é um marco do Centro de São Paulo. E eu sempre estou disposto a colaborar com o desenvolvimento dessa região da cidade”, afirmou. Seis anos mais tarde, em 2001, comprou as partes dos demais sócios e tornou-se o único proprietário da mercearia, assumindo a responsabilidade de preservar e modernizar esse patrimônio histórico da cidade.

Como único dono da Casa Godinho, a primeira mudança significativa que realizou foi baixar os preços de todos os produtos. “Eu entrei em contato com os fornecedores, pesquisei o mercado e ajustei os preços para atrair mais clientes”, disse. “Antes, havia dias que não entravam nem 40 pessoas aqui”. Pouco depois, implementou outra novidade: montou uma padaria dentro da mercearia, fazendo com que pães e doces chegassem sempre fresquinhos ao balcão. Na mesma época, ele percebeu a necessidade de diversificar a oferta de produtos, ainda muito voltados a uma clientela mais elitizada, que comprava queijos, azeites, vinhos e o célebre bacalhau. Passou a vender bolos de festa, salgadinhos, esfirra, pastel doce, brigadeiro. As mudanças surtiram efeito. Em poucas semanas, a clientela já havia triplicado. “Quando abríamos a mercearia, às 6h da manhã, já tinha fila na porta, com gente querendo comprar nossos pães, salgados e doces”.

Nasce um ícone – Em 2006, Romano teve a ideia de criar um novo produto, usando como ingrediente principal a grande estrela da casa, o bacalhau. Já nos primeiros dias, a empada de bacalhau virou um enorme sucesso, chegando a receber o prêmio de melhor empada de São Paulo. “Em 2012, chegamos a vender 1,5 mil unidades num único dia. Virou um ícone nosso”, disse ele, destacando que hoje a média de vendas da empada de bacalhau é de trezentas por dia, ao custo de R$ 12,95 cada. Atualmente, ele também serve empadas de camarão, frango, linguiça, palmito, entre outros sabores.

Mesmo com todas as mudanças estratégicas, a Casa Godinho segue sendo uma espécie de máquina do tempo para seus clientes. Os pisos de ladrilho hidráulico e as prateleiras de imbuia respeitam o estilo das antigas mercearias, assim como o atendimento especializado. O vendedor acompanha cada cliente, tira suas dúvidas e o leva até o caixa, na hora de pagar. Enquanto isso, os produtos comprados são embrulhados em papel, como era feito no passado. Romano acredita que tudo isso só é possível porque ele se esforçou para entender o funcionamento do local, desde o momento em que assumiu o comando do negócio.

Quando tornou-se sócio, ele tinha pouco conhecimento do setor, mas foi aprendendo com seus sócios e funcionários. Frequentava o estabelecimento todos os dias, para adquirir conhecimento sobre vinhos e azeites, aprender como verificar a frescura do bacalhau e entender que temperos eram ideais para cada receita. Além disso, se dedicou a aprender a melhor forma de atender aos clientes. Até hoje, a verificação das remessas de bacalhau acontece, processo considerado fundamental pelo empresário. “Quando compramos bacalhau, sempre abrimos as caixas para verificar a qualidade. A cor, a textura e o cheiro são essenciais. Se algo está fora do padrão, nós devolvemos”, afirmou.

Dedicação total – Mesmo após quase 30 anos à frente do negócio, Romano não se afastou das operações cotidianas. Ele acorda todos os dias às 5 horas da manhã, para abrir a padaria. É sempre o primeiro a chegar. Sozinho, liga os fornos e prepara, ele próprio, a primeira leva de pães. Essa dedicação é um hábito que Romano mantém até hoje, mesmo com 15 funcionários trabalhando na casa. “Graças à minha equipe, eu reduzi um pouco o meu ritmo. Mas ainda chego cedo e ajudo nas primeiras tarefas do dia”. Reduzir o ritmo, no entanto, não significa que Romano pense em se aposentar do trabalho no seu estabelecimento. Muito pelo contrário. Ele quer seguir fazendo parte da história do Centro de São Paulo e faz planos para o futuro. Um deles tem a ver com o comando da Casa Godinho.

Seu sonho é passar o bastão para o filho, Miguel Della Fuente Romano. Aos 27 anos, o rapaz é chef de cozinha e trabalha no restaurante Brabo, em Barcelona, na Espanha. Se o desejo de Romano se cumprir, não será a primeira vez que pai e filho vão trabalhar juntos. Em 2017, Della Fuente atuou como subgerente de alimentos e bebidas da Casa Godinho. Enquanto o filho continua na Espanha, o empresário segue firme no seu objetivo de manter a mercearia como um dos ícones de São Paulo e ajudar na revitalização do Centro. Há cerca de 2 anos, ele expandiu suas operações, com a inauguração de outro estabelecimento, ao lado da Casa Godinho. Abriu o Rei da Salsicha, lanchonete especializada em cachorros-quentes e cujo nome foi escolhido em homenagem a um lugar que ele frequentava na região quando criança. Com iniciativas assim, Miguel Romano não apenas diversifica seus negócios, como também contribui para trazer um pouco mais de vida, sabor e diversão ao centro histórico da cidade. Mas sem esquecer a tradição da Casa Godinho, primeiro Patrimônio Imaterial de São Paulo.

Crédito texto e imagem: Bruna Galati

Descubra mais no Youtube!