Mercadão vive processo de ‘shoppinização’

A Mercado SP, empresa que administra o espaço, atualizou os valores da locação a preço de mercado em até dez vezes, de acordo com comerciantes. Concessionária informa que lojistas tiveram quase 4 anos para se adaptar e que mudança trouxe renovação do espaço, mais segurança jurídica e clientes

Por Fátima Fernandes/Diário do Comércio

Um dos ícones arquitetônicos de São Paulo, o Mercado Municipal, o famoso Mercadão, inaugurado em 1933, passa por um processo de ‘shoppinização’.

Desde abril de 2021, a Prefeitura de São Paulo entregou a administração do espaço para um consórcio privado, o Mercado SP SPE S.A., sob o modelo de concessão, por 25 anos.

Antes da assinatura do contrato, o Tribunal de Contas do Município (TCM) chegou a suspender temporariamente a concessão, mas a situação foi esclarecida e regularizada. A partir de então, teve início o prazo de 90 dias para a transferência da operação do mercado.

Essa transferência incluiu a transição dos lojistas da condição de permissionários, sob gestão da Prefeitura de São Paulo, para a de locatários, sob a administração da concessionária.

Durante três anos e dez meses, os valores pagos pelos comerciantes quase não se alteraram. A grande surpresa ocorreu a partir de abril deste ano, com o reajuste no valor da locação.

Lojistas ouvidos pelo Diário do Comércio informaram que, de um mês para o outro, o preço do metro quadrado do uso do espaço subiu de R$ 40, R$ 60, para R$ 350, até R$ 600.

Uma das famílias mais antigas do estabelecimento informou que pagava para a Prefeitura cerca de R$ 200 mil por ano para uso do espaço, valor que subiu para R$ 600 mil.

Com 256 boxes, o Mercadão, projetado pelo arquiteto Francisco Ramos de Azevedo e inspirado no Mercado Central de Berlim, mudou as suas características administrativas, de acordo com os comerciantes.

“Passamos de permissionários para inquilinos e, até agora, não assinei contrato de locação. Só recebi um boleto com o reajuste”, afirma um lojista que preferiu não se identificar.

Permissão X locação

Há diferenças entre um contrato de permissão e um de locação. A locação envolve a transferência da posse mediante um contrato de aluguel, com regras e prazos.

A permissão é um ato administrativo que autoriza a exploração de um serviço público ou o uso de um bem público, como no caso do Mercadão, que pode ser revogado a qualquer momento.

Há dois grupos distintos entre os lojistas do Mercadão ouvidos pelo Diário do ComércioUm que está indignado com a alta do custo dos espaços e outro que diz ‘não ter do que reclamar’.

“A gente pagava R$ 50 o metro quadrado, quase nada. O reajuste foi necessário para melhorar as condições do Mercadão, que estava caído”, afirma um lojista, que também prefere não se identificar.

Com a nova administradora, diz, existe um trabalho de divulgação do local dentro e fora do país. “Quem não consegue pagar é porque o negócio já não vinha bem”, afirma.

Existe receio dos dois grupos de se manifestar, especialmente das famílias que estão há décadas no local e não querem perder o ponto, que é o sustento de muitas delas.

“Infelizmente, para dar conta do reajuste, tivemos de subir os preços. Um prato comercial que custava R$ 20 passou para R$ 35. Não podemos vender com prejuízo”, diz outro lojista.

Um comerciante diz que a alta do custo de uso do espaço acabou desvalorizando os pontos. “Tinha loja que, para passar o ponto, podia receber R$ 2 milhões. Hoje, nem por R$ 500 mil consegue passar”, diz.

A promessa de limpeza e renovação dos espaços, dizem eles, também não foi cumprida. Basta andar pelos corredores, escadas, banheiros para ver que ainda há muito o que fazer por ali.  

Lei do inquilinato

Daniel Cerveira, advogado especializado em contratos comerciais, diz que uma empresa privada não pode simplesmente impor um valor de locação e enviar um boleto.

“É preciso que haja uma negociação entre as partes, não pode haver o envio de boleto sem comunicação prévia, falta de transparência e comunicação com os lojistas”, afirma.

Na concessão dos aeroportos, diz, as concessionárias assumiram os contratos da Infraero feitos com as lojas, que passaram a pagar os mesmos valores para as empresas privadas.

“Quando os prazos dos contratos acabaram, os valores foram negociados com as lojas. Umas aceitaram para não perder o ponto. Outras, não”, afirma o advogado.

Em casos como este, diz Cerveira, o que passa a vigorar é a relação de locação, regida pela Lei do Inquilinato.

“É importante que os contratos sejam de cinco anos, para que o lojista tenha direito a ação renovatória, que permite ao locatário renovar o contrato mesmo contra a vontade do locador.”

Quando uma concessionária explora espaços para fins privados, comerciais, diz, mesmo sendo um bem da Prefeitura, no caso do Mercadão, a relação é de direito privado.

Procurada para esclarecer sobre as mudanças nos contratos entre a concessionária e os lojistas, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo (SpRegula) informou, por meio de nota, o seguinte:

“As relações entre a concessionária e os ocupantes dos boxes são regidas pelo contrato de locação, regimento interno e Manual do Locatário, elaborado conforme as diretrizes do contrato de concessão. O mercado não é um shopping center, razão pela qual não se aplica a Lei do Inquilinato.”

Para Cerveira, a partir do momento em que existe um contrato de locação entre empresas privadas, como é o caso do Mercadão, aplica-se a Lei do Inquilinato.

“Nos contratos com imóveis de Prefeituras, Estados e União não se aplica a lei, mas quando são explorados por entidades privadas, aplica-se. A natureza da relação é como a de um shopping.”

Lojistas que dizem estar descontentes com a forma como estão sendo feitas as mudanças nas relações falam em queda na visitação e no faturamento, entre 20% e 30%.

“Como estamos pagando mais pelo espaço, os preços também subiram, o que está desagradando os consumidores”, diz um lojista que prefere não se identificar.

Lojistas que se dizem satisfeitos afirmam que, com a concessionária, aumentou o número de visitantes, também entre 20% e 30%, com um trabalho de divulgação do centro de compras.

Segurança jurídica

Aldo Bonametti, CEO da Mercado SP, diz que a cobrança da locação em valores de mercado já estava prevista e que os comerciantes tiveram três anos e dez meses para se adaptar.

“Não teve contrato com aumento de dez vezes e todos os lojistas que ficaram possuem contratos de locação negociados caso a caso com os novos valores”, afirma.

Os lojistas que saíram, de acordo com ele, já não tinham condições de pagar os valores para a Prefeitura. Os contratos agora são de três anos, com reajustes anuais pelo IPCA ou pelo IGP-M.

“Essa mudança deu segurança para os comerciantes. Eles tinham uma condição precária, uma permissão de uso que poderia ser cassada a qualquer momento. Agora, eles têm um contrato de locação, com prazo determinado, segurança jurídica numa relação privada”, afirma.

A vacância hoje no Mercadão, de acordo com Bonametti, é de 10% a 15%, e o mix de lojas de hoje deve ser mantido, com frutarias, peixarias, açougues, produtos a granel e restaurantes.

Cerca de 80% dos investimentos de R$ 80 milhões para restauro e reforma do Mercadão já foram realizados, diz ele, e não devem parar.

“Trocamos 6 mil metros de piso, vitrais, rede elétrica, esgoto, telhado, fizemos impermeabilização e cuidamos da segurança no entorno.”

Todos ganham com a concessão, diz, os lojistas, os clientes e os cofres públicos. “A Prefeitura deixou de gastar R$ 800 mil por mês com a manutenção do equipamento”.

Desde que a administração do Mercadão passou para a Mercado SP, diz, o número de visitantes, da ordem de 10 mil pessoas por dia, aumentou entre 20% e 30%.

“Fizemos campanhas para trazer turistas daqui e da África do Sul, da Inglaterra, de Portugal e outros países por meio de eventos, em parceria com a Secretaria de Turismo do Estado.”

A Mercado SP ganhou a concessão com uma oferta de R$ 112 milhões e direciona 5% do faturamento bruto do Mercadão à Prefeitura de São Paulo, de acordo com Bonametti.

Para a SpRegula, “a concessão traz como principais mudanças o restauro dos mercados, o aumento significativo nos investimentos e a qualificação dos serviços, com foco em proporcionar uma melhor experiência aos frequentadores, além de garantir maior eficiência na gestão dos espaços”.

A SpRegula informa ainda que, sobre o término das obras, houve um pedido, já protocolado, de prorrogação do prazo por 180 dias, devido a ajustes exigidos pelos órgãos do patrimônio.

O Mercadão foi tombado em 2004 pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado).

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