
O Palacete Tereza Toledo Lara domina a esquina da rua Quintino Bocaiúva, por onde fica sua entrada, com a rua Direita. Hoje, é mais famoso por sediar a Casa de Francisca – concorrido espaço gastronômico e sociocultural. Mas o imóvel tombado já abrigou também a primeira loja de instrumentos da cidade (Casa Bevilacqua), a editora de música Irmãos Vitale e a rádio Record – em uma das paredes externas há, inclusive, uma placa que destaca a presença de Adoniran Barbosa. Não à toa o endereço ficou conhecido como A Esquina Musical de São Paulo.
No primeiro andar do palacete, até o ano passado, um contrabaixo ficava exposto nas janelas. Desde então, desceu pro térreo. Para o número 123 da rua Direita, que fica sob as arcadas do palacete. O instrumento, agora à porta, avisa que você chegou à Casa Amadeus – referência, claro, a Wolfgang Amadeus Mozart. Especializada em instrumentos musicais e partituras, apesar de ter aberto as portas em abril de 2009, tem muita história em seu DNA. À frente da loja e atrás do balcão ficam Homero França, 73 anos, e Renilson Gama, 51. Os dois trabalharam na antiga Casa Bevilacqua. “Os fundadores da Casa Amadeus eram ex-funcionários”, disse Renilson, que também esteve na editora Irmãos Vitale. Empacotava discos quando adolescente e hoje é um dos três sócios da casa. Empacotador, diga-se, de discos de vinil.
“Permanecemos 15 anos lá em cima [no palacete]. Optamos por vir para baixo, um espaço menor, mas com maior visibilidade e possibilidade de venda. E tem dado bom resultado.” O Palacete Lara, como é mais conhecido (há outro edifício com esse nome no Centro, na rua Álvares Penteado), renasceu com a Casa de Francisca, que em 2017 se mudou de Pinheiros, na Zona Oeste, para o Centro Histórico. Foi uma mudança na contramão da tendência dos últimos anos, em que o comércio de entretenimento se afastou do Centro, mas que deu força ao movimento de revitalização da região. Conhecida pelos shows no palco do primeiro andar, agora também oferece espaços no térreo e no porão. Quando chegou ao palacete, dividia o primeiro andar justamente com a Casa Amadeus.
DE HARPAS A VIOLAS – Renilson diz que um diferencial da loja é oferecer acessórios, como cavaletes e cordas avulsas de violino, enquanto outros locais comercializam apenas instrumentos. Que também não faltam: violão (Eagle, Giannini, Marquês, Rozini, Serenna), viola caipira, banjo, cavaquinho, violoncelos, contrabaixo, flautas (a demanda por flauta doce, por exemplo, cresce no período de volta às aulas), saxofone, teclados, bateria. Três harpas paraguaias. E métodos. “Por mais excêntrico que seja um instrumento, tem um método para ele.” Partituras, que ainda se encontram em quantidade, apesar dos downloads, dos tablets e do pessoal que tira cópia. A casa também tem livros, alguns difíceis de achar, CDs e alguns LPs. Além de estudantes e pesquisadores, às vezes algum músico aparece por lá. Nas redes sociais da casa, aparecem imagens da cantora Marina Lima e dos instrumentistas Hamilton de Holanda e Hermeto Pascoal.
Não se pode falar de Casa Amadeu sem se falar do palacete e da Casa Bevilacqua. Aberta na cidade em 1911, ela vendia pianos e teclados e já funcionava no Rio de Janeiro antes de chegar a São Paulo. A Bevilacqua saiu do Palacete Lara somente em 1992. Passou por vários lugares e fechou em 2008. Outro endereço musical hospedado por décadas ali foi a Irmãos Vitale, que existiu de 1930 a 2009. Pioneira editora musical, com acervo de 25 mil músicas, de 9 mil autores ou herdeiros. Tem ainda uma coleção de songbooks com mais de 50 nomes. Somavam-se à Bevilacqua e à Vitale os artistas que se apresentavam na Record.
Ou seja, a música não parava de circular pelos corredores e paredes do palacete. Não só a música. A emissora de rádio também era conhecida pelos programas de humor ou dramas, como O Crime Não Compensa, baseado em casos policiais, que entrou no ar em janeiro de 1948, nas noites de sexta-feira. O roteiro era escrito por Osvaldo Moles, que depois assinaria o programa História das Malocas, protagonizado por Adoniran (no papel do malandro Charutinho). É desse caldo e desse ambiente que nasce a Casa Amadeus.
Renilson e Homero passaram a vida entre partituras e LPs. Um período em que os shoppings eram uma novidade. Homero lembra-se apenas do Iguatemi (aberto em 1966) e do Ibirapuera (1976). Ele trabalhava em uma pequena loja de LPs na praça da Sé. “Os primeiros 50 discos dos Secos&Molhados quem vendeu fui eu”, afirmou Homero. De sucesso instantâneo, o conjunto formado por João Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso surgiu em 1973 e fez furor, mas teve vida curta. “Tocava Sangue Latino [a primeira faixa do LP] e o pessoal parava para perguntar o que era”, disse. Hoje, cinco décadas depois, ele continua no lugar certo. Sob o palacete. Junto da música. “Meu mundo é a música. Só não gosto de ruído. Música tem que ter harmonia.” E a resistência da Amadeus mostra que o público continua procurando outros sons.
Crédito texto e imagem: Vitor Nuzzi – Agência DC News