Há quem considere herança familiar somente o aspecto financeiro da coisa. Não é o caso de Cairê Aoas, sócio da Fábrica de Bares, e um apaixonado pelo Centro de São Paulo. À frente de grandes estabelecimentos, como o Bar Brahma, Bar dos Arcos e Blue Note, o empresário de 39 anos tem uma relação antiga e afetiva com o centro histórico – e não abre mão disso.
Com uma pequena loja, seu avô (a quem ele visitava com frequência) foi caneteiro e relojoeiro na Rua 15 de Novembro, em uma portinha no prédio ao lado da Bolsa de Valores. Anos depois, a algumas ruas dali, seu pai, Álvaro Aoas, foi um pioneiro ao inaugurar, em 1990, o Café São Paulo Antigo, um bar de jazz, na Santa Cecília, com ambientação que remetia à São Paulo do começo do século 20.
Foi ali que Cairê começou a trabalhar aos 13 anos, em uma noite de réveillon caótica. Com parte da equipe de cozinha ausente, ajudou em tudo o que conseguia – do caixa à pia. E o que era para ser apenas temporário, virou trabalho. Aos 18 anos, quando começou a cursar Administração e Hotelaria, assumiu a gerência do bar e viu de perto o trabalho de seu pai para recuperar o Bar Brahma, após sua falência, na esquina da avenida Ipiranga com a São João.
Embora ainda fosse muito jovem, Cairê já sabia que aquela casa erguida em 1948 pelas mãos de um imigrante alemão (Henrique Hillebrecht) não se tratava de qualquer bar, mas sim de uma página importante da história da cidade.
Lá, a família Aoas conseguiu uma licença da Ambev para o uso da marca e fez uma restauração completa do espaço. Retomou as tendências dos anos 1950, voltando a receber em seu palco grandes nomes da música.
O que veio a seguir, pouco mais de uma década depois, foi o anúncio do fechamento de outro ícone da noite de São Paulo: o Bar Léo, na Santa Ifigênia. Desde os anos 1940, a casa está na Rua Aurora, pedaço da cidade que também sofre com a degradação urbana.
Meses depois de ter sido fechado, Álvaro e Cairê foram chamados para participar da recuperação do novo Bar Léo, e assumi-lo em definitivo. O processo passou por reuniões com os próprios clientes, os mais tradicionais, para saber o que podia ou não ser mexido no lugar.
Um dos pontos principais, na ocasião, foi a presença daquele que já foi o garçom mais celebrado da cidade, o Luiz de Oliveira (que trabalhou por 55 anos no Léo, e morreu em 2017, aos 95 anos). De lá para cá, o Bar Léo foi ampliado e ainda ganhou um irmão, na Vila Madalena, e outro no Rio de Janeiro.
Em 2014, com esses estabelecimentos bem cotados, pai e filho entenderam que tinham vocação para trabalhar com marcas históricas e que precisassem de uma nova administração. E assim surgiu a Fábrica de Bares. Hoje, em São Paulo, o negócio está ligado a nove estabelecimentos desse tipo: Bar Brahma, Bar Léo, Bar dos Arcos, Riviera Bar, Bar Jacaré, Blue Note, Orfeu, Zé da Praia e Cervejaria Navarro.
Quase todos com o mesmo histórico de recuperação. O Riviera, bar preferido de jovens revolucionários e artistas embriagados na década de 1950, estava com pouco mais de 70 anos de vida quando passou por um constante “abre e fecha”. No térreo do edifício Anchieta, na esquina da avenida Paulista com a Consolação, o bar chegou à gestão da Fábrica de Bares em 2020.
Outro marco importante veio em 2019, quando o Jacaré Grill – lugar responsável por transformar a Vila Madalena no que ela é hoje – passou a ser administrado pela Fábrica de Bares. Com mais de 30 anos de história, o Jacaré começou como um negócio de espetinhos na frente de um açougue da família.
Em breve, mais um nome vai para essa lista, com a revitalização do Love Story, boate que após 26 anos de história fechou as portas, mas irá ganhar vida nova pelas mãos de Cairê, Facundo Guerra e Lily Scott, outros dois empresários que gerenciam casas noturnas no Centro de São Paulo.
Mantida no bairro da República e conhecida como “a casa de todas as casas”, o negócio passará a ser chamado de Love Cabaret. A história chegou ao fim em fevereiro de 2020, quando foi decretada a falência do estabelecimento, com bens avaliados em R$ 5,5 milhões.
E a busca por reviver lugares históricos da cidade não acabou. Além dos novos projetos ainda mantidos em segredo, a Fábrica de Bares se prepara para um novo marco: o Hotel Bar Brahma, um quatro estrelas temático, que deve ser inaugurado até o meio de 2024 no número 757 da avenida Ipiranga.
Quem conhece a região sabe do que se trata. O imóvel é o mesmo do Hotel Marabá, fundado em meados dos anos 1940 e com térreo ocupado pelo cinema homônimo. A ideia é que esse novo ponto hoteleiro, agora operado pelo grupo, fomente ainda mais a vida noturna da região com diárias que devem partir de R$ 300.
Alguns benefícios já dão a dica dessa comunicação entre os estabelecimentos: chope de boas-vindas, acesso sem pagamento de couvert artístico a shows do Bar Brahma, além de translado gratuito a atrações turísticas e a casas como Blue Note e Riviera.
Conheça um pouco mais sobre a história da Fábrica de Bares na entrevista feita pelo Diário do Comércio com Cairê Aoas:
DC – A Fábrica de Bares carrega uma lista de negócios salvos da falência. Poderia explicar o caminho das pedras desse trabalho?
Cairê Aoas – Não acredito exatamente em uma receita ou em uma visão de mercado. Meio que aconteceu por acaso e, obviamente, o Bar Brahma foi muito importante para isso, em 2001. Na sequência pegamos o Bar Léo, que quando fechou foi uma comoção para quem gosta do Centro. Nós gostamos da região, gostamos de bar e sentimos o mesmo por um negócio que estava lá há 80 anos. Foi eleito o melhor botequim do Brasil por vários anos, melhor chope, não podia fechar. Nesse caso, fomos convidados a participar do processo de resgate como uma consequência do que a gente foi aprendendo a fazer.
Talvez a maior semelhança entre esses negócios seja que é preciso manter tradição, manter valores e manter ritos. Manter a alma do negócio é preservar tudo o que o bar tem de importante para aquela comunidade, e isso não pode ser alterado.
Muitos negócios procuram a Fábrica de Bares pedindo ajuda para não fechar. Como vocês lidam com isso?
Acho que isso acontece com qualquer empresário bem-sucedido do Centro. Temos consciência da responsabilidade de administrar estabelecimentos em endereços importantes da cidade, como Consolação com Paulista, Conjunto Nacional, Copan e Theatro Municipal. Acreditamos no resgate do Centro para a autoestima do paulistano e somos apaixonados por fazer isso acontecer.
De todos os negócios que salvaram, qual foi o mais desafiador e por que?
Diria que o Bar Brahma e o Love Cabaret, pois ambos carregam uma expectativa muito grande por parte de um público fiel e ávido por esse resgate. Além do peso de lidar com uma referência histórica, tem também a mudança de trajetória, seja conceitual ou na gestão, na oferta de produtos, que precisa ser bem trabalhada. Não estamos falando de lugares que se mantiveram como foram concebidos para ser.
Além disso, as duas casas estão no Centro, o que sem dúvida é um desafio adicional. Lidar com a questão da segurança e degradação do Centro, mas valorizar que estamos em um lugar vivo e ativo culturalmente, gastronomicamente e arquitetonicamente. Tudo isso gera uma necessidade de superação que faz ser bom não apenas no propósito de abrir um negócio e gerí-lo bem, mas também em ter uma postura diferente para se manter aberto e seguro a ponto de convencer as pessoas a frequentarem esses estabelecimentos.
Você defende a ideia de que os empresários do Centro deveriam atuar como miniprefeitos, cuidando não só de sua fachada, mas do entorno. Poderia exemplificar como materializa essa postura em seus negócios?
Vejo isso como uma obrigação. É uma questão de cidadania de cada um assumir minimamente o que pode ser feito e melhorado no espaço em que habita. Vejo realmente como uma necessidade de sobrevivência cuidar da questão de segurança, conservação urbana, limpeza, e até da valorização das pessoas que moram perto do seu negócio ao contribuir para a economia, para geração de emprego e ocupação daquela região.
Também julgo importante a questão de se relacionar com outros negócios do entorno, outros empreendedores e, assim, ir criando uma rede que se fortalece. Tudo isso é ainda mais importante e vital no Centro, que é diferente de outros bairros que vivem outras realidades. É a atitude de propor projetos e iniciativas a partir das nossas demandas que vai transformar o Centro.
O que diria para quem deseja empreender no Centro e precisa de encorajamento?
Eu diria venham! Quanto mais gente no Centro melhor para o paulistano, para os negócios, para transformar esse lugar maravilhoso. É o lugar onde mais temos mobilidade na cidade, rico em cultura, história, diversidade, e uma região muito bem equipada. E que apesar de há décadas passar por uma situação de abandono, tem sido muito abraçada por empresários apaixonados em mantê-la viva. Diria para vir com coragem, com entusiasmo e fé de que essa participação vai fazer diferença para a melhoria desse lugar.
Crédito texto: Mariana Missiaggia/DC
IMAGEM: Fábrica de Bares/Divulgação